Chungking Express (1994)

O filme Chungking Express (1994), dirigido por Wong Kar-wai, é um exemplo perfeito de como o Kishotenketsu pode ser aplicado ao cinema de maneira não convencional. Embora o filme não siga explicitamente a estrutura de Kishotenketsu, seus dois segmentos narrativos, que envolvem histórias de amor e solidão em Hong Kong, refletem muitos dos princípios dessa estrutura ao enfatizar o desenvolvimento de personagens e suas emoções sobre grandes conflitos externos.

Vamos aplicar a estrutura Kishotenketsu às duas histórias interconectadas do filme:

Primeira História: O Policial 223 e a Mulher de Peruca Loira

Ki: Introdução

A primeira história de Chungking Express começa com a introdução do policial 223 (Takeshi Kaneshiro), que está lidando com a recente separação de sua namorada. Ele compra latas de abacaxi que vencem no dia 1º de maio, acreditando que se ainda estiver solteiro até essa data, o relacionamento estará definitivamente acabado. Paralelamente, conhecemos uma mulher misteriosa (Brigitte Lin) usando uma peruca loira, envolvida no submundo do crime, tentando completar uma operação ilegal.

Aqui, a estrutura Ki estabelece os personagens, seus contextos e suas rotinas. O policial 223 está emocionalmente à deriva, e a mulher de peruca loira enfrenta suas próprias tensões no mundo do crime. Não há um conflito explícito entre os personagens até este ponto, apenas a apresentação de seus mundos separados.

Sho: Desenvolvimento

O desenvolvimento expande os detalhes sobre os personagens. O policial 223 continua sua obsessão com as latas de abacaxi, enquanto a mulher de peruca loira enfrenta complicações em sua operação de tráfico. Ambos vivem vidas solitárias e desiludidas em Hong Kong, e suas trajetórias parecem completamente desconectadas.

O Sho revela mais sobre os sentimentos de solidão e as pequenas rotinas que ambos os personagens adotam para lidar com sua situação. Eles não estão em conflito com o ambiente ou entre si, mas internamente lidam com o vazio de suas vidas.

Ten: Reviravolta

A reviravolta ocorre quando os caminhos dos dois personagens se cruzam. Após uma noite de bebedeira, o policial 223 encontra a mulher de peruca loira em um bar e decide passar a noite com ela. No entanto, não há um envolvimento romântico óbvio; ela adormece, exausta, e ele passa a noite com ela no quarto de hotel sem tentar nada. Esse encontro muda a perspectiva de ambos, especialmente para o policial 223, que começa a aceitar o fim de seu relacionamento anterior.

Neste ponto, o Ten é a mudança sutil, não um confronto, mas um momento de introspecção e aceitação, especialmente para o policial 223. O simples fato de estar com alguém altera sua percepção sobre seu próprio estado emocional.

Ketsu: Conclusão

A história termina com a mulher de peruca loira completando sua operação e desaparecendo da vida do policial 223. Ele aceita o fim do seu relacionamento anterior e se despede simbolicamente ao comprar um último pacote de batata frita. Não há uma resolução dramática, mas uma aceitação calma de que a vida continua.

O Ketsu aqui é uma harmonização dos eventos: o policial 223 não resolve nenhum grande conflito, mas sua jornada emocional é concluída com a aceitação de sua solidão e do fim de sua obsessão pelo relacionamento anterior.

Segunda História: O Policial 663 e Faye

Ki: Introdução

Na segunda história, somos apresentados ao policial 663 (Tony Leung), outro homem lidando com o término de um relacionamento, dessa vez com uma aeromoça que o deixou. Ele continua a viver sua vida rotineira, frequentando a lanchonete onde Faye (Faye Wong), uma jovem excêntrica, trabalha. Faye se apaixona por ele em segredo e começa a invadir seu apartamento enquanto ele está fora, reorganizando suas coisas.

O Ki aqui apresenta os personagens e suas rotinas sem pressa. O policial 663 está emocionalmente entorpecido, enquanto Faye, uma jovem energética e curiosa, observa sua vida à distância, sem confrontá-lo diretamente.

Sho: Desenvolvimento

Faye continua a invadir o apartamento do policial 663, limpando e rearranjando objetos, tentando, de forma quase obsessiva, mudar seu ambiente. O policial 663, por outro lado, ainda vive imerso em sua rotina e memória da ex-namorada. Nenhum deles está envolvido em um conflito direto, mas o filme foca no desenvolvimento emocional gradual de ambos.

O Sho é marcado pela forma como Faye altera o apartamento de 663, quase como se estivesse tentando alterar o estado emocional dele indiretamente. Ele, no entanto, permanece inconsciente das mudanças, tanto no apartamento quanto em seus próprios sentimentos.

Ten: Reviravolta

A reviravolta acontece quando o policial 663 finalmente percebe Faye e suas ações. Ele começa a questionar o que está acontecendo, mas não a confronta diretamente. Em vez disso, ele se abre para a possibilidade de um novo relacionamento. O momento em que ele convida Faye para um encontro é uma reviravolta suave, mas significativa, que altera o curso de suas vidas.

Aqui, o Ten é novamente uma mudança interna, em vez de um confronto externo. O policial 663 não luta contra Faye, mas lentamente começa a perceber que está pronto para seguir em frente emocionalmente.

Ketsu: Conclusão

A história conclui com Faye partindo para uma viagem e deixando o policial 663 para trás temporariamente. Quando ela retorna, agora como aeromoça, o policial 663 a convida para recomeçar. A conclusão é aberta e deixa implícito que a relação entre eles pode se desenvolver, mas sem uma resolução clara.

O Ketsu é, assim como na primeira história, uma aceitação do fluxo natural das coisas. Não há resolução dramática, mas uma quieta contemplação sobre as mudanças que ocorreram, tanto internas quanto externas.

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